quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Conto "Pele de Escrava" de Carina Portugal


O chicote cortou o ar e encolhi-me por instinto, antes de a ponta estalar a um centímetro da minha mão. O segundo impacto foi certeiro. Gritei de dor e estremeci ao ser atingida na omoplata. O chicote recuou no instante seguinte, contudo não consegui recuperar, pois este voltou a abater-se sobre mim, acertando na chaga em início de cicatrização, um pouco abaixo das costelas. Cerrei os dentes e desta vez abafei o gemido, encolhendo-me mais e baixando a cabeça até a fronte tocar na pedra.
– Mexe-te, filha da mãe. Ou dou-te de comer aos ratos.
Uma mão crispou-se-me nos cabelos e, num só impulso, puxou-me a cabeça para trás. Solucei quando senti a outra mão na minha garganta, os dedos apertando-a de forma a cortar-me a respiração.
– E se te portares bem, irás fazer-me companhia esta noite – silvou-me ao ouvido, bafejando-me o rosto com um odor podre. O aperto no pescoço diminuiu e a mão escorregou-me pelo peito, arrepiando-me a pele. – Estás a arder de desejo por mim, cabra…
Deu-me ainda mais nojo ouvi-lo, mas não me mexi. Apesar de fingir não compreender o que ele dizia, o asqueroso toque dele nos meus seios falava por si.
Por fim libertou-me o cabelo e a minha cabeça pendeu. A cortina de cabelo castanho escondeu-me as lágrimas que começaram a escorrer mal os passos dele se afastaram, levando consigo a ameaça do chicote e de algo que temia ainda mais.
Ergui-me, as pernas tremendo como varas verdes, e apoiei-me no espaldar da cadeira mais próxima. À minha frente, através do espelho preso a uma das paredes da sala, o meu próprio reflexo mirava-me, de olheiras fundas e escuras, enquanto com uma mão palpava os estragos feitos nas minhas costas. Senti a humidade do sangue através do quíton. A ferida reabrira. Amaldiçoei-o em silêncio, amaldiçoei a sua família, a sua casa, o seu país, e amaldiçoei-me. O espelho mostrava-me o esgar horrível que me enrugava a testa e o rio de lágrimas que parecia não querer parar.
Respirei fundo, endireitei-me e limpei o rosto com as costas das mãos. Obriguei-me a sorrir para o reflexo, mas era só um movimento de lábios sem significado para o coração. Suspirei, contudo o reflexo não me imitou. Os lábios moveram-se e consegui ler o que me diziam sem fazer barulho.
“Mata-o, por nós”.
Arregalei os olhos e tapei a boca. O reflexo seguiu-me o exemplo. Por momentos ainda considerei que mexera os lábios sem dar conta, mas o que aconteceu a seguir apagou essa ideia. A cor do rosto à minha frente mudou, os olhos tornaram-se mais amendoados, o tom escureceu, os cabelos encaracolaram. Já não era eu que ali estava. A seguir o corpo adelgaçou-se, o cabelo tingiu-se de cor de palha, o olhar lembrava um oceano profundo. E de súbito era lilás, e a seguir vermelho, e a mulher que me fitava era albina.
Estava a ficar doida, só podia ser isso! Abanei a cabeça e recuei um passo. Sem querer, pisei um dos cacos cortantes espalhados pelo chão.
– Ai… – Levantei o pé por reflexo e baixei o olhar para os restos do jarro de cerâmica que me valera o chicoteamento.
Quando voltei a olhar para o espelho, nada mais havia lá, para além do meu reflexo. Era isso, ele estava a enlouquecer-me.

*

Pouco depois do jantar ele mandou chamar-me. Fingi-me doente. Cambaleei, vomitei a minha parca refeição à sua frente. Repugnado, chutou-me o rosto para longe dos pés dele e, apesar da agressão, nessa noite, tive paz.
– Devias pedir auxílio e encontrar amos que cuidem de ti, antes que ele te mate também.
Ergui o olhar para o sítio onde estaria Guaíl, a velha escrava com a qual partilhava o quarto minúsculo onde as enxergas mal cabiam. No entanto não a conseguia ver por entre a escuridão.
– Ele já matou outras escravas? – sussurrei, lembrando-me dos muitos rostos assustados que me tinham olhado do espelho.
– Nunca foi acusado formalmente da morte de nenhuma, mas antes de ti já teve 12 escravas, e a todas Átropos cortou o fio da vida.
Estremeci e encolhi-me um pouco sob o cobertor puído.
– E tu?
– Eu não sou uma bela escrava. Quando ele era criança, já o meu rosto estava engelhado, as minhas pernas tortas, o cabelo com fios brancos – disse. – Ele não me comprou.
– Alguma delas era albina?
Depois de uma pequena pausa que me deixou expectante, Guaíl respondeu.
– Nárin. Foi a última antes de ti. Lembrava uma ninfa doce.
Não fui capaz de dizer palavra. Fechei os olhos com força e os lábios formaram uma linha compacta. A mensagem delas pairava sobre mim como se implorassem por vingança. Ou seria justiça? Ou antes queriam que eu impedisse que aquilo acontecesse a outra mulher?
O medo corroía-me.
Sonhei com cada um dos rostos do espelho. Reuniram-se à minha volta, entrançaram-me o cabelo, abraçaram-me, como se fossem minhas irmãs. Contudo, quando abriam os lábios sorridentes, a única coisa que diziam era “mata-o, por nós”. Acordei quando uma delas me estendia uma tesoura, cujo reflexo das lâminas me atingiu os olhos. Ao abrir as pálpebras, deparei-me com o Sol a despontar no horizonte. Sem eu dar conta, Guaíl levantara-se já e fora aos seus afazeres.
Inspirei fundo e ergui-me com um gemido. Lavei o corpo com água fria e entrancei o cabelo. Quando estava pronta fui comer um parco pequeno-almoço e dediquei-me às minhas tarefas diárias, ponderando em tudo o que acontecera.
Perto da hora do almoço, enquanto cortava a carne que seria servida, constatei o quão afiada era a faca que segurava, os estragos que faria caso cortasse carne humana. Mas não seria capaz, nunca. E que hipóteses teria de sobreviver? Todos saberiam que fora eu, mesmo que o atacasse durante a noite, enquanto dormia. Talvez devesse aceitar o meu destino, talvez… olhei para a janela, através da qual se via o jardim repleto de flores. Também elas estavam indefesas ao ceifar da vida. Porém algumas deixavam a sua recordação: um perfume de deusa, uma beleza que competia com Afrodite e, lá bem no fundo, com a própria Medusa.
De tarde, tratei dos meus deveres no jardim. Podei as rosas, colhi maçãs, reguei a terra e, no fim, debrucei-me junto ao canteiro das beladonas. Toquei-lhes nas flores. As pétalas eram suaves, de tonalidade lilás. E muitos crédulos não sabiam o que escondiam em si.
– Tão belas quanto tu.
O meu coração quase saltou do peito. Segurei-o com ambas as mãos, não me atrevendo a olhar para trás, ou sequer a responder. Não escutara a sua chegada, apesar de ele estar tão próximo. A mão dele passou por mim e colheu um dos ramos. Ouvi-o cheirá-lo e soltar um suspiro, antes de me agarrar no cabelo com força e prender lá a flor.
– Termina a tua tarefa no jardim, banha-te, perfuma-te. Esta noite não vou admitir desculpas.
Os lábios dele tocaram-me o ombro e estremeci. Ele riu-se levemente e deixou-me com as flores. Fechei os olhos por um momento e respirei fundo. Os rostos mortos reapareceram dentro da minha cabeça, cada sorriso extinto mais belo do que o outro. Se ele me queria bela, ficá-lo-ia só para ele, em honra de quem perecera nas suas mãos.
Colhi bagas, folhas e até partes da raiz da planta, levando-os comigo para a cozinha. Fervi as folhas e usei a infusão para lavar a pele com um trapo, com o cuidado de o líquido não tocar em nenhuma ferida. A seguir, macerei as raízes num almofariz até formar uma pasta, diluí-a um pouco e untei o corpo, principalmente junto aos seios. Guaíl observava-me por vezes, sem nada dizer.
Quando me achei pronta, vesti-me e caminhei até à sala, quase contando os passos. Da entrada espreitei o espelho. Daquele ângulo não devia reflectir nada mais do que a mobília. No entanto, lá estava um reflexo vindo de lado nenhum. Um vulto sem rosto que tentava dispor os objectos, apesar de não o conseguir. Inspirei fundo, ganhei coragem e aproximei-me. Só vi o meu reflexo quando me posicionei de frente para ele. Mordi o lábio inferior e fitei cada recanto do reflexo, como se esperasse encontrar alguém por ali escondido. Atentei na moldura e, pela primeira vez, apercebi-me dos pequenos corpos femininos entalhados na madeira. Deveriam ser ninfas. Que tipo de bruxaria era esta?
Por fim, toquei com os dedos na superfície espelhada.
– Olá – murmurei. – Nárin?
O reflexo tremeluziu. A minha pele curtida pelo sol clareou, os olhos ganharam aquele tom tão raro dos albinos, e o cabelo quase parecia neve.
Sorri-lhe e ela retribuiu-me o sorriso, deixando-me incerta se aquele sorriso seria mesmo o dela. Os dedos tocavam os meus, levando-me quase a jurar que conseguia sentir o seu calor.
– Estão presas aí dentro? Como é que vos posso tirar?
Limitou-se a sorrir, de olhos tristes. Senti-me de mãos atadas, como se aquele sorriso falasse e me dissesse que era impossível libertá-las.
– Mas como é que foram aí ter? – Já esperava não receber qualquer resposta, ainda assim a frustração espicaçou-me, quando ela abanou a cabeça.
Hesitante, Nárin esticou a outra mão, parecendo querer tocar-me o rosto.
De súbito, ouvi passos. Baixei depressa a mão que tocava o espelho e voltei-me para trás. No entanto não vi ninguém. Fui até à porta com passos de lã e espreitei. Estaria alguém a espiar-me?

*

As gargalhadas irrompiam do andron, alimentadas pelo vinho. Sentada sobre a minha enxerga, temia o cessar desse som. Contudo ele chegou de um momento para o outro, sem aviso. Guaíl entrou no quarto, com preocupação no olhar, acabara eu de pôr uma nova camada da loção que fabricara, tentando intensificar não só o perfume como outras propriedades.
– O senhor chama-te. Tem cuidado.
Engoli em seco, escondendo o almofariz, e depois levantei-me com um inspirar profundo. Não o podia temer.
– Coragem, Allyra – murmurou a velha escrava. Era a única que conhecia o meu verdadeiro nome.
Fiz um pequeno aceno e saí. Ele esperava-me sentado na cama. Abri um pouco mais os olhos quando, ao seu lado, o chicote me saltou à vista.
– Não o usarei, se te portares bem – garantiu, de sorriso matreiro nos lábios.
"Coragem" disse a mim mesma.
Deixei cair o quíton aos meus pés, quando estava a menos de um metro dele. Os seus olhos dardejaram-me o corpo, apreciadores. A seguir levantou-se e deu uma volta em meu redor, como um predador que escolhe a melhor zona da vítima para cravar as garras. Agarrou-me por trás e encostou-me a si. As mãos escorregaram-me pelos ombros e seguraram-me os seios, massajando-os um pouco. Contive o vómito, quando o meu estômago se revoltou contra o que estava a acontecer.
Tentei ocupar a mente com outros pensamentos, qualquer coisa. Mas era difícil, e tornou-se ainda mais quando ele, já nu, me puxou para a cama e sobrepôs o seu corpo ao meu. Forcei-me a não fugir e submeti-me.
Pior do que esta noite, só aquela em que os soldados invadiram a aldeia onde morava, assassinaram o meu pai mesmo à minha frente e me capturaram, tal como à minha irmã. Havia tanto sangue em nosso redor, debaixo dos nossos pés descalços, nos nossos pesadelos…
Fechei as mãos sobre os lençóis e deixei-o tomar-me. Se ele viu, ignorou por completo as lágrimas que me fugiam dos olhos.
Usou-me como bem queria, de tal forma que me senti uma boneca. Já nem sequer pensava sobre quando aquilo acabaria, quando ele recuou. Levou uma mão ao peito e tossicou.
– Maldito jantar – murmurou para si. Saiu de cima de mim, sem que eu conseguisse sequer acreditar no que acontecia. Fiquei quieta por segundos, observando-o a sentar-se à beira da cama, agarrado aos joelhos, enquanto inspirava fundo e expirava devagar. O corpo oscilou ligeiramente, antes de ele esfregar os olhos e engolir em seco. – O que é que se passa comigo?
Recuei até à cabeceira, encolhendo as pernas contra o peito. Desinteressara-se de mim, talvez tivesse alguma hipótese de lhe escapar. Sem aviso, ele voltou o rosto para mim, com uma expressão assustadora, de olhos muito abertos. A língua parecia saborear qualquer coisa que tinha na boca.
– Tu tinhas um sabor estranho – notou. – Nunca estive com uma mulher com um sabor assim…
Talvez a minha expressão fosse de culpa, porque ele abriu ainda mais as pálpebras, apesar de, um segundo atrás, eu o ter considerado impossível.
– Veneno… és venenosa, grande cabra – silvou.
Esticou de súbito o braço para mim. Dei um salto para fora da cama e fugi do quarto. Atrás de mim, um jarro estilhaçou-se contra a parede, falhando o alvo por uma unha negra. Quando alcancei a porta principal dei com ela já trancada. Praguejei e mudei de rumo. Por um momento olhei para trás. Ele estava a pouco menos de três metros, correndo como que aos ziguezagues, ameaçando cair a qualquer momento. As palavras entremeavam-se, difíceis de perceber, mas obviamente amaldiçoava-me.
Vendo-a como única saída, parei junto a uma janela e destranquei as portadas de madeira. Preparava-me para saltar, quando ele me agarrou no cabelo, puxando-me. Tombei, embatendo no chão com todo o peso do corpo. Ele não me deu escapatória. Primeiro pontapeou-me nas costelas e, vendo que me encolhia, debruçou-se sobre mim, esmurrou-me, bateu-me com a cabeça no chão e voltou a esmurrar-me, de tal forma que mal conseguia gritar por ajuda. Senti a cabeça prestes a explodir, até a dor horrível se transformar em dormência.

*

Sentia-me leve, como se estivesse num sonho. Devagarinho, abri os olhos. Vários rostos reuniam-se em meu redor, preocupados. Conseguia ver através deles, como se fossem almas do Hades. Mas se fossem de lá, estariam lá, não aqui. Ou era eu que estava lá? Levantei as mãos e contemplei-as. Acontecia-lhes o mesmo que àqueles rostos, era capaz de ver o estranho tecto branco através delas. Ou seria o céu?
– Como estás, Allyra? – perguntou uma jovem albina. Os dedos tocaram-me no cabelo, lembrando o toque da brisa.
– Nárin… Saíram do espelho? – Lembrei-me de súbito do meu amo. – Onde está ele?
– Vê por ti.
Uma delas apontou para a minha frente. Sentei-me devagar e olhei na direcção indicada, através de um vidro mais alto do que eu. Parecia uma janela, pelo menos deste lado.
O meu senhor cambaleava, agarrado ao peito e de rosto muito vermelho. Os nós dos dedos estavam sujos do meu próprio sangue. A cabeça movia-se de um lado para o outro, sem nada ver. Desferiu um murro no ar e, no momento a seguir, tropeçou num banco, estatelando-se. Tentou levantar-se, mas as pernas não lhe obedeceram. Fiquei a vê-lo agoniar, enquanto o veneno fazia o seu trabalho. Não me senti feliz pelo seu tormento, só queria que morresse de vez.
– Acabou – murmurei quando, perante mim, vi a sua alma libertar-se do corpo. – Não magoará mais ninguém.
Entreolhámo-nos. Apesar de tudo, a morte dele não fora o suficiente para nos libertar do espelho.
Ao amanhecer, Guaíl espreitou a sala, deparando-se com o cadáver provavelmente já frio. Ainda assim, verificou se já não respirava. Vi um pequeno sorriso nos seus lábios, ao dirigir-se até ao espelho.
– Agora só falta uma coisa, minhas queridas.
Pegou no banco onde o defunto tropeçara e atirou-o com toda a força contra o espelho. Mal a “janela” se estilhaçou, as nossas almas foram atraídas para o exterior.
– Nunca mais serão escravas de ninguém, a liberdade é vossa – ainda ouvi Guaíl dizer, antes de desaparecer.

Carina Portugal

2 devaneios:

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Parabéns ao Bloco de Devaneios! Gostei muito de escrever este conto.

Um abraço!

Anónimo disse...

Obrigada eu *.*

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